Já ouviu dizer que as estórias contadas, ou narrativas orais, não têm o mesmo valor que as escritas? Ao conversarmos sobre os nossos interesses em pesquisa, um colega, professor de literatura, disse-me que dedicava-se ao estudo das “verdadeiras estórias,” as escritas. É interessante observar como apesar de usarmos estórias todos os dias e para um sem-número de objetivos, muitos de nós não nos damos conta de quão relevantes e pervasivas as estórias são às nossas interações diárias. Já observou com que freqüência você conta estórias?
Nós contamos estórias sobre o que fizemos durante o dia, sobre as dificuldades que tivemos para chegar ao trabalho, sobre dificuldades em casa ou no trabalho, sobre o final de semana, sobre as viagens que fizemos. Muitos de nós crescemos ouvindo estórias, seja as que foram contadas por nossos pais, seja as que nos foram lidas. Também, narrativas nos emocionam e nos mantém entretidos. Considere, por exemplo, as narrativas no cinema, na música e as que podemos descobrir em outras formas de manifestações artísticas, tais como a pintura. A lista de como as narrativas fazem parte do nosso dia-a-dia é longa.
A investigação de narrativas também tem interessado a estudiosos e teóricos de várias disciplinas. Por exemplo, o estudo de narrativas é agora parte de alguns programas de medicina nos Estados Unidos, tais como o programa da Universidade de Columbia. Psicólogos e lingüistas têm se interessado em estudar estórias orais, aquelas que nós contamos no nosso dia-a-dia para dar exemplos, para fazer ilustrações ou para divertir outros. De fato, de acordo com estudiosos do gênero, as narrativas são um importante veículo para se entender aspectos relativos à identidade dos seus falantes-narradores e também para dar a conhecer aspectos de sua cultura e até mesmo do seu lugar de origem.
De acordo com vários teóricos, através da narrativa pode-se não só revelar as idéias sobre si mesmos que seus autores possuem, mas também permitir-lhes construir essas noções de identidade. Por exemplo, ao estudar estórias contadas por falantes judeus, Schiffrin (1996) observou que estórias oferecem aos seus destinatários um “auto-retrato sociolingüístico” de seus atores. É através das estórias que contamos, e de como as contamos, que revelamos à nossa audiência idéias da nossa própria identidade, quem somos, ou o que pensamos sobre nós mesmos.
Essa construção acontece tanto através das formas lingüísticas que usamos (tipos de pronomes, variações vocabulares que marcam a nossa formação ou que indicam o lugar de onde viemos), como por meio das idéias que transmitimos sobre nós mesmos à medida que descrevemos os personagens nos episódios relatados e os relacionamentos entre eles. De fato, os autores de uma narrativa podem sobressair-se ora como agentes responsáveis pelas ações que descrevem, ora como vítimas, indivíduos com quem os eventos acontecem e sobre os quais não se tem qualquer controle (imagine aqui alguém tentando impressionar seus amigos contando-lhes como corajosamente reagiu a uma figura de autoridade ao ser pego com a “boca na botija.” Agora, imagine a mesma estória sendo contada do ponto de vista do outro personagem, a figura de autoridade).
Em junho de 2004, eu estive no Recife para conversar com voluntários sobre a existência de racismo no Brasil ou, mais especificamente, nas suas vidas e nas suas experiências pessoais. Entrevistei 19 indivíduos cujas formações variavam. Por exemplo, entrevistei funcionários públicos, professores de escolas secundárias, um veterinário, estudantes universitários, um atleta profissional, um advogado e empregadas domésticas. O objetivo da minha interação com esses indivíduos foi obter informações sobre o que faz alguém chegar à conclusão de que foi discriminado por causa da cor da sua pele.
Ora, poder-se-ia dizer, quando se é discriminado não há quaisquer dúvidas. Porém, uma acusação freqüente à qual os que descrevem terem sido vítimas de discriminação estão sujeitos é que esses mesmos indivíduos são excessivamente sensíveis e que enxergam o racismo à menor sombra de infortúnios. Trata-se mesmo disso? A minha investigação visava, em parte, destacar os elementos lingüísticos presentes nesses relatos que revelassem o raciocínio por trás da discriminação. Eu estava interessada também em como os autores dessas narrativas figuravam, isto é, se sobressaiam-se como vítimas ou como pessoas que reagiam quando discriminados.
As estórias que coletei revelaram (corroborando o que já havia sido apontado por outros pesquisadores), na sua maior parte, que aqueles que se dizem vítimas de discriminação racial não avançam simplesmente a essa conclusão sem antes realizar uma cuidadosa apreciação da situação em questão. Independente do que pensamos sobre a existência e o alcance do racismo no Brasil ou em que grau ele chega a afetar a vida das pessoas, há de se levar em consideração os efeitos de atitudes discriminatórias para aqueles que acreditam terem sido vitimizados pelo racismo.
Mais do que conseguir dados para a minha tese de doutorado, a experiência de conversar com pessoas que descreveram essas circunstâncias e de ouvir suas estórias foi uma grande e pungente lição. Se pretendemos mesmo chegar a entender ao outro e evitar a geração de problemas no nosso lidar com indivíduos de formação e experiência diferentes da nossa, compartilhar suas estórias é um bom começo. As experiências de discriminação que coletei revelaram, entre outras coisas, os cenários e situações mais típicas em que a discriminação ocorre. Além disso, tais estórias oferecem a perspectiva daqueles que experimentaram a discriminação, detalhando como isso afeta a forma como se sentem.
Considere, por exemplo, a estória de um atleta profissional que chegou a ser detido pela polícia porque uma vendedora desconfiou de que ele e seu amigo não possuíssem os recursos necessários para comprar os objetos de uma loja. Ou ainda, o caso de uma estudante universitária que, indagando sobre o preço de um computador exposto em uma loja recebeu como resposta a infeliz explicação de que o computador em questão estava quebrado e que a loja não vendia computadores. (Nesse último caso, parece mesmo tratar-se de um duplo insulto na medida em que houve, de acordo com a autora do relato, não só um atitude preconceituosa e discriminatória por parte do vendedor, mas também uma implícita sugestão de que ela havia interpretado erroneamente a presença de um computador na loja.) Restou perguntar (o que, infelizmente, a nossa narradora não fez): se não estava à venda, para que fim mesmo é que o computador encontrava-se exposto?
Por se tratar de um assunto tão delicado e que põe aqueles que experimentaram a situação em uma posição onde se arrisca aquilo a que lingüistas chamam de “face negativa,” seu desejo de serem respeitados e apreciados, nem todos com quem falei foram diretos ao descrever o preconceito a que foram sujeitos. Por exemplo, em alguns casos os autores dessas estórias não usaram o pronome de primeira pessoa, dando preferência a formas impessoais e coletivas, como “você” ou “a gente,” respectivamente.
Quanto ao conteúdo, tais estórias também revelaram as “velhas formas” nas quais o preconceito se manifesta em nossa sociedade, os “velhos” receios, e as “velhas,”, mas persistentes e infelizes noções de como evitar que futuras gerações venham a ter os mesmo problemas que as gerações anteriores: através do casamento com os de pele mais clara. E, o que poderia parecer surpreendente, a maioria dos indivíduos a quem eu entrevistei não aprovava a medida governamental do regime de quotas universitárias para alunos negros. Muitos disseram achar que os problemas que se precisam combater estão situados bem antes da universidade, por exemplo, na qualidade do ensino público oferecido às populações pobres.
A lista daquilo que se pode aprender, e que eu tive a feliz experiência de poder ter aprendido com as pessoas a quem entrevistei, é extensa e o espaço aqui é limitado para relatá-lo em sua integridade. Porém, sobram uma certeza que vale a pena aqui referir: estórias, narrativas orais mesmo, aquelas que contamos no dia-a-dia, são importantes veículos para registrar, revelar e construir não só a nossa identidade, a idéia que fazemos de nós mesmos, mas também para revelar uma infinidade e riqueza de informações sobre aqueles com quem lidamos. Portanto, da próxima vez que alguém quiser lhe contar uma estória, preste atenção! Você poderá descobrir bem mais do que imagina...
Já ouviu dizer que as estórias contadas, ou narrativas orais, não têm o mesmo valor que as escritas? Ao conversarmos sobre os nossos interesses em pesquisa, um colega, professor de literatura, disse-me que dedicava-se ao estudo das “verdadeiras estórias,” as escritas. É interessante observar como apesar de usarmos estórias todos os dias e para um sem-número de objetivos, muitos de nós não nos damos conta de quão relevantes e pervasivas as estórias são às nossas interações diárias. Já observou com que freqüência você conta estórias?
Nós contamos estórias sobre o que fizemos durante o dia, sobre as dificuldades que tivemos para chegar ao trabalho, sobre dificuldades em casa ou no trabalho, sobre o final de semana, sobre as viagens que fizemos. Muitos de nós crescemos ouvindo estórias, seja as que foram contadas por nossos pais, seja as que nos foram lidas. Também, narrativas nos emocionam e nos mantém entretidos. Considere, por exemplo, as narrativas no cinema, na música e as que podemos descobrir em outras formas de manifestações artísticas, tais como a pintura. A lista de como as narrativas fazem parte do nosso dia-a-dia é longa.
A investigação de narrativas também tem interessado a estudiosos e teóricos de várias disciplinas. Por exemplo, o estudo de narrativas é agora parte de alguns programas de medicina nos Estados Unidos, tais como o programa da Universidade de Columbia. Psicólogos e lingüistas têm se interessado em estudar estórias orais, aquelas que nós contamos no nosso dia-a-dia para dar exemplos, para fazer ilustrações ou para divertir outros. De fato, de acordo com estudiosos do gênero, as narrativas são um importante veículo para se entender aspectos relativos à identidade dos seus falantes-narradores e também para dar a conhecer aspectos de sua cultura e até mesmo do seu lugar de origem.
De acordo com vários teóricos, através da narrativa pode-se não só revelar as idéias sobre si mesmos que seus autores possuem, mas também permitir-lhes construir essas noções de identidade. Por exemplo, ao estudar estórias contadas por falantes judeus, Schiffrin (1996) observou que estórias oferecem aos seus destinatários um “auto-retrato sociolingüístico” de seus atores. É através das estórias que contamos, e de como as contamos, que revelamos à nossa audiência idéias da nossa própria identidade, quem somos, ou o que pensamos sobre nós mesmos.
Essa construção acontece tanto através das formas lingüísticas que usamos (tipos de pronomes, variações vocabulares que marcam a nossa formação ou que indicam o lugar de onde viemos), como por meio das idéias que transmitimos sobre nós mesmos à medida que descrevemos os personagens nos episódios relatados e os relacionamentos entre eles. De fato, os autores de uma narrativa podem sobressair-se ora como agentes responsáveis pelas ações que descrevem, ora como vítimas, indivíduos com quem os eventos acontecem e sobre os quais não se tem qualquer controle (imagine aqui alguém tentando impressionar seus amigos contando-lhes como corajosamente reagiu a uma figura de autoridade ao ser pego com a “boca na botija.” Agora, imagine a mesma estória sendo contada do ponto de vista do outro personagem, a figura de autoridade).
Em junho de 2004, eu estive no Recife para conversar com voluntários sobre a existência de racismo no Brasil ou, mais especificamente, nas suas vidas e nas suas experiências pessoais. Entrevistei 19 indivíduos cujas formações variavam. Por exemplo, entrevistei funcionários públicos, professores de escolas secundárias, um veterinário, estudantes universitários, um atleta profissional, um advogado e empregadas domésticas. O objetivo da minha interação com esses indivíduos foi obter informações sobre o que faz alguém chegar à conclusão de que foi discriminado por causa da cor da sua pele.
Ora, poder-se-ia dizer, quando se é discriminado não há quaisquer dúvidas. Porém, uma acusação freqüente à qual os que descrevem terem sido vítimas de discriminação estão sujeitos é que esses mesmos indivíduos são excessivamente sensíveis e que enxergam o racismo à menor sombra de infortúnios. Trata-se mesmo disso? A minha investigação visava, em parte, destacar os elementos lingüísticos presentes nesses relatos que revelassem o raciocínio por trás da discriminação. Eu estava interessada também em como os autores dessas narrativas figuravam, isto é, se sobressaiam-se como vítimas ou como pessoas que reagiam quando discriminados.
As estórias que coletei revelaram (corroborando o que já havia sido apontado por outros pesquisadores), na sua maior parte, que aqueles que se dizem vítimas de discriminação racial não avançam simplesmente a essa conclusão sem antes realizar uma cuidadosa apreciação da situação em questão. Independente do que pensamos sobre a existência e o alcance do racismo no Brasil ou em que grau ele chega a afetar a vida das pessoas, há de se levar em consideração os efeitos de atitudes discriminatórias para aqueles que acreditam terem sido vitimizados pelo racismo.
Mais do que conseguir dados para a minha tese de doutorado, a experiência de conversar com pessoas que descreveram essas circunstâncias e de ouvir suas estórias foi uma grande e pungente lição. Se pretendemos mesmo chegar a entender ao outro e evitar a geração de problemas no nosso lidar com indivíduos de formação e experiência diferentes da nossa, compartilhar suas estórias é um bom começo. As experiências de discriminação que coletei revelaram, entre outras coisas, os cenários e situações mais típicas em que a discriminação ocorre. Além disso, tais estórias oferecem a perspectiva daqueles que experimentaram a discriminação, detalhando como isso afeta a forma como se sentem.
Considere, por exemplo, a estória de um atleta profissional que chegou a ser detido pela polícia porque uma vendedora desconfiou de que ele e seu amigo não possuíssem os recursos necessários para comprar os objetos de uma loja. Ou ainda, o caso de uma estudante universitária que, indagando sobre o preço de um computador exposto em uma loja recebeu como resposta a infeliz explicação de que o computador em questão estava quebrado e que a loja não vendia computadores. (Nesse último caso, parece mesmo tratar-se de um duplo insulto na medida em que houve, de acordo com a autora do relato, não só um atitude preconceituosa e discriminatória por parte do vendedor, mas também uma implícita sugestão de que ela havia interpretado erroneamente a presença de um computador na loja.) Restou perguntar (o que, infelizmente, a nossa narradora não fez): se não estava à venda, para que fim mesmo é que o computador encontrava-se exposto?
Por se tratar de um assunto tão delicado e que põe aqueles que experimentaram a situação em uma posição onde se arrisca aquilo a que lingüistas chamam de “face negativa,” seu desejo de serem respeitados e apreciados, nem todos com quem falei foram diretos ao descrever o preconceito a que foram sujeitos. Por exemplo, em alguns casos os autores dessas estórias não usaram o pronome de primeira pessoa, dando preferência a formas impessoais e coletivas, como “você” ou “a gente,” respectivamente.
Quanto ao conteúdo, tais estórias também revelaram as “velhas formas” nas quais o preconceito se manifesta em nossa sociedade, os “velhos” receios, e as “velhas,”, mas persistentes e infelizes noções de como evitar que futuras gerações venham a ter os mesmo problemas que as gerações anteriores: através do casamento com os de pele mais clara. E, o que poderia parecer surpreendente, a maioria dos indivíduos a quem eu entrevistei não aprovava a medida governamental do regime de quotas universitárias para alunos negros. Muitos disseram achar que os problemas que se precisam combater estão situados bem antes da universidade, por exemplo, na qualidade do ensino público oferecido às populações pobres.
A lista daquilo que se pode aprender, e que eu tive a feliz experiência de poder ter aprendido com as pessoas a quem entrevistei, é extensa e o espaço aqui é limitado para relatá-lo em sua integridade. Porém, sobram uma certeza que vale a pena aqui referir: estórias, narrativas orais mesmo, aquelas que contamos no dia-a-dia, são importantes veículos para registrar, revelar e construir não só a nossa identidade, a idéia que fazemos de nós mesmos, mas também para revelar uma infinidade e riqueza de informações sobre aqueles com quem lidamos. Portanto, da próxima vez que alguém quiser lhe contar uma estória, preste atenção! Você poderá descobrir bem mais do que imagina...
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